Segunda-feira, Janeiro 31

Carnaval 2006

Mais uma vez o Brasil copiava os Estados Unidos. Isso aconteceu faz uns 30 anos, na época em que os EUA eram governados por um tal de Bush. Lá, ele havia implantado um regime fundamentalista religioso. Tudo era pecaminoso, proibido, sujo. Um horror. E isso, claro, acabou chegando ao Brasil.

Essa onda fundamentalista chegou à Sapucaí em 2006. O prefeito da época, o César Maia, baixou um decreto que pretendia moralizar o Carnaval. Nada de peitos de fora, biquinis sumários e gente se embebedando.

A primeira grande mudança foi a proibição das vendas dos camarotes para empresas de cerveja. As igrejas pentecostais dominaram a grande maioria deles. Mas os católicos marcaram presença comprando o maior. Dava pra ver os bispos e seus chapelões sentados ali assistindo a tudo.

Na avenida, as passistas acenavam comportadas para o público vestidas com sais logo abaixo do joelho e camisa abotoadas até o pescoço. Na bateria, os ritmistas batiam compassadamente em suas bíblias acompanhando o coral no cântico-enredo daquele ano.

Nos bailes, nem refrigerante entrava e, ao invés do tradicional lança-perfume, um padre aspergia água benta nos fiéis. Enquanto isso, o padre Marcelo e sua banda arrebentavam no palco com marchinhas religiosas.

Na clássica Fiesta Carnaval, fotos dos tornozelos peludos das garotas. A molecada se acabava no banheiro, porque ninguém é de ferro, afinal.

Foi um tempo muito esquisito aquele. Ainda bem que isso acabou e agora a gente pode olhar livremente os joelhos da mulherada.

Sexta-feira, Janeiro 28

Destruição

O Coronel lembra-se bem daquela época. Os aviões cruzavam os céus da cidade sem parar. E deles caiam bombas, muitas bombas. Elas arrasavam tudo. Destruíam prédios, praças, hospitais, casas. "Os pilotos da Luftwaffe eram implacavelmente precisos." Dizia isso e tentava esconder a lágrima que teimava em querer sair de seu olho.

Era doloroso a ele lembrar daqueles tempos. Os alemães, na sua ânsia de dominar o mundo, não respeitavam nada. "Acabavam com tudo o que vinha na frente", lembrava ele para a platéia silenciosa e atenta.

No momento mais emocionante do relato, ele levanta-se com a dificuldade característica da idade avançada, saca uma pilha de fotos do bolso e fala:
- Se vocês pensam que esta cidade sempre foi assim, estão enganados! Aqui já foi um lugar bom de se viver. Era uma cidade bonita, amável, charmosa. A culpa de toda essa destruição é daqueles malditos nazistas! Eles é que destruíram São Paulo! Vejam, vejam com os seus próprios olhos como era este lugar antes de acontecer esta desgraça.

E as fotos passaram de mão em mão, deixando todos boquiabertos.




















Quarta-feira, Janeiro 26

Viagem

A luz do sol invadiu sua barraca fazendo olhos doerem. Acordou com as costas doendo. “Que merda dormir em barraca”, pensou. Paulo já estava arrependido de ter ido acampar só para agradar Isabel. Mesmo que esta fosse uma oportunidade para se aproximar definitivamente dela.

O leite de soja e o mingau de gérmen de trigo não faziam parte do seu desjejum habitual. Preferia um café preto. Sem açúcar. O papo não estava muito interessante, também. Soja transgênica, desenvolvimento sustentável. Tudo muito cabeça. Ah, como se arrependeu de ter feito essa viagem.

Esperou a hora do almoço comer de verdade. Ao pararem em frente a um restaurante vegetariano, Paulo explodiu “Fórum Social Mundial é o cacete. Dá licença que eu vou comer.” Saiu em disparada, cruzando a avenida. Ninguém disse nada. Ficaram todos ali parados, olhando perplexos Paulo entrar no Mac Donald’s do outro lado da rua.

Terça-feira, Janeiro 18

Fim de noite

Impossível de não reparar. O casal sentado à mesa, um de frente para o outro. Conversavam com certa animação. Não muita. Mas parecia haver um carinho muito especial entre eles. Em nenhum momento, porém, se tocaram ou deram a entender ser um casal de fato.

Depois de um tempo esqueci de sua presença. O restaurante encheu, novas caras surgiram e atraíram minha atenção. Continuei meu papo com minha amiga. Ela, coitada, se lamentava do namorado que não lhe dava atenção. E eu, coitada, ouvia entediada. Nunca fui dessas mulheres que gostam de sofrer junto com minhas amigas seus problemas sentimentais. O que, inclusive, me causava alguns embaraços. Como eu era insensível, diziam. Dava de ombros e continuava minha vida.

Voltando do banheiro, não resisti. Mudei o trajeto só para encontrar o tal casal. Curiosidade feminina, claro. Ele se inclinou sobre a mesa e a beijou. Ela retribuiu. Ele voltou à posição inicial e continuaram a conversar. As mãos, porém, agora se tocavam até com certa timidez. Os perdi de vista ao voltar para a minha amiga.

Meia hora depois, quase morta de tédio, pedi para ir embora. Meio a contra-gosto – acho que não havia se lamentado o suficiente –, ela pediu a conta. E, gentilmente, pagou. Acho que foi uma forma de compensar toda sua chatice. Uma coisa boa na noite, pelo menos.

Chegamos ao estacionamento e percebi um casal literalmente grudado um ao outro. Sôfregos, se beijavam com fúria. Com surpresa, os reconheci. Sim, eles estavam no restaurante. De comportados a selvagens. Não consegui tirar os olhos. O carro chegou e o manobrista abriu a porta. Antes de entrar, pude ouvir ele dizer “Vamos para minha casa”. Ela suspirou forte, quase gemendo. Sua noite deve ter sido boa.

Segunda-feira, Janeiro 17

À beira da estrada

Armando entrou no bar que ficava à beira da estrada. O sol da tarde castigava o asfalto sem piedade e ele, cansado das horas ao volante, procurava algo para se refrescar. O boteco era igual aos muitos aos que já vira em suas andanças como repórter de uma revista automobilística. Um vira-lata deitado na porta, 3 ou 4 clientes bebendo e jogando dominó.

Foi até balcão e viu que o proprietário era diferente do típico dono desse tipo de estabelecimento. Era um senhor alto e gordo, com os poucos cabelos que restavam já brancos. Armando achou que ele tinha uma cara familiar. Pediu uma água com gás. O senhor prontamente o serviu. Tinha um forte sotaque. Parecia ser inglês. “Sou americano”- esclareceu.

Ficaram em silêncio. O jornalista bebericava sua água intrigado. O que faria um senhor americano num lugar daqueles e não aproveitando a aposentadoria em Miami? Perguntou ao homem.

- Uma longa história, meu amigo. Mas só posso lhe dizer que cansei da vida que eu tinha. Larguei tudo e vim viver aqui, no anonimato.
- Entendo... Largou família, amigos...?
- Tudo. Vim só com uma malinha e um violão.
- O senhor é músico?
- Já fui. Hoje não mais.
- Famoso?
- Mais ou menos.
- Ah ta... Bom preciso ir andando. Tenha uma boa tarde sêo, sêo...
- Elvis, me chamo Elvis.

Terça-feira, Janeiro 11

Praia

- Sim, sim. Muitas vezes eu me revolto com essa situação. Fico maluco quando vejo. Aquelas mulheres todas tão oferecidas. Oras, que querem elas? O que pretendem? Acham que com esse andar malemolente vão conquistar o mundo. Não, estão muitíssimo enganadas, isso sim. Não basta uma barriguinha, um biquinho, uma tanguinha pra se conseguir algo. Pelo menos comigo não, nem vem. Eu sei que muitos são fracos. Se entregam todos por conta de um andar em que o quadril tenha uma oscilação lateral mais do que o normal. Paspalhos. Como podem? Uns velhotes embasbacados por meninotas que mal saíram da adolescência. Pensam que eu não sei o que fazem. Pois sim. Daqui a pouco chegam aí, todo assanhados querendo puxar conversa. Eu não. Fico aqui, quieto no meu canto a ler meu jornal. Não sou desses deslumbrados, não senhora. Sou é homem de respeito.
- Olavo, você acha que eu sou besta, é? Eu to vendo que você não tira os olhos da bunda daquela menina, seu cachorro.

Quarta-feira, Janeiro 5

Feliz o quê?

- Feliz Natal? Próspero Ano Novo? O escambau! O escambau, ta ouvindo? Pára com esse negócio de achar que só porque chegamos ao final do ano as coisas mudam. Mudam nada! Vai continuar tudo a mesma merda. A não ser, é claro, que você mexa essa sua bunda e resolva fazer algo por você e pelo outros. Você ta me entendendo? Não existe Papai Noel. E essa cordialidade toda que toooodo mundo demonstra nessa época é uma farsa. Uma tremenda farsa, isso sim. A hora que passar a ressaca do porre do reveiôn, você, como todo mundo, vai sentar e esperar pacientemente pelo Carnaval. Para aí, quem sabe?, resolverem tomar uma atitude e fazer alguma coisa!!!!

Orlando, então, bateu a porta do carro com força e saiu cantando pneu. Deixou a missionária religiosa com um olhar muito assustado, segurando o pacote de cartões de Natal.

Terça-feira, Janeiro 4

Virada de ano

Joana ainda estava em estado de choque quando parou em frente ao portão. Não era bem um choque. Um torpor, isso, um torpor tomava conta de seu corpo, de sua mente, de sua alma. Jamais imaginaria sentir algo assim. Em sua cabeça, como grandes slides projetados na parede branca, ela visualizava as imagens marcantes que vivera poucos dia atrás.

Conheceu Paulo, amigo do seu irmão, pouco antes da festa de ano novo começar. Ela toda comportada, vestido logo abaixo dos joelhos, uma blusa comum e sapato baixo. Tudo branco como manda a tradição. Todo esse recato, os cabelos presos, o ar intimidado atraíram o rapaz.

Minutos após a entrada do novo ano ele a puxou para a parte dos fundos da casa, abandonando a confusão e euforia da gente que lá dentro cantava, bebia e celebrava a virada. Joana resistiu. Lembrou-o que era compromissada. “Eu sei”, ele respondeu.

Beijaram-se. Primeiro com timidez. Depois, com fúria. Os corpos se esfregavam num ritmo alucinado. Num repente, como se tivesse havido uma grande descarga elétrica, os dois amantes se separam. Guardando uma certa distância entre eles, a garota olhou bem nos olhos de Paulo por longos segundos. Partiu, então, para nunca mais se verem.

Uma voz ríspida, irritante e familiar despertou Joana do seu sonho-acordadob. “Irmã Joana, não bastasse o atraso ainda fica aí parada no portão. Entra logo. Há muito que fazer.”

Com o olhar perdido na fachada do convento, a jovem freira ficou lá enraizada sem ao menos conseguir dizer uma só palavra.

Segunda-feira, Janeiro 3

Peso

Tudo pesa. Mover as pernas é um sacrifício. Elas doem. As mãos não obedecem aos comandos dados pelo cérebro que está preguiçoso. Os maxilares estão enrijecidos. Não permitem que nada seja dito. Nem que se mastigue algo. E o estômago continua a reclamar do seu vazio d’alma. Um dia, quem sabe, todos acordam e seguem felizes para algum lugar.