Segunda-feira, Fevereiro 14

Das obrigações

Um dia, sentado na varanda lá da fazenda, fiquei pensando nas obrigações a vida. Desde quando a gente nasce até a hora que morremos, temos um monte de obrigações. As da própria vida, estudar, trabalhar, casar, ter filhos e os criar. As da lei como os impostos, o voto, o CPF e o RG. E para os homens tem um obrigação adicional: o maldito serviço militar.

Aliás, como odiei aquele tempo. Aquela gente toda por um objetivo estúpido: a guerra. E no nosso caso a coisa era pior. Nem guerra temos. Ah, que tédio era passar os dias naquele quartel caiando o tronco das árvores. Bem, pior eram os estúpidos indisciplinados, obrigados a chafurdar naquelas latrinas ordinárias. Eu é que ficava bem quieto no meu canto e obedecia servilmente as ordens do sargento boçal. Pelo menos garantia minha tranqüilidade.

Mas, voltando, hoje acho que as obrigações são muito maiores e intensas. Imagine só que meu neto se revolta com o fato de eu não ter o tal do e-mail. E eu lá quero essa coisa? Se nem Internet eu uso, quanto mais esse tal. Quer falar comigo? Me ligue, então. Quer contar piada? Fim de semana que vem você me conta. O computador que me deram, por sinal, está ocupando espaço lá no quarto. Pelo menos a patroa vez uma coberturazinha de crochê pra cobrir aquela caixa bege sem graça.

Pior foi outro dia em que estava ouvindo tango. Disseram-me que a obrigação do brasileiro é odiar os argentinos. E eu lá tenho motivo para isso? Nunca me fizeram nada. Ficam eles lá, achando que moram na Europa enquanto nós ficamos por aqui, achando que tudo é lindo e maravilhoso na terra abençoada por um Deus que eu desconheço. Porque se ele fosse bom mesmo com a gente não estaríamos assim, desse jeito. Mas essa é outra história.

Enquanto não me perturbarem, deixo os argentinos e os palmeirenses quietos nos cantos deles porque sua insignificância não mexe uma só palha nessa minha vida. E dá licença, que a Maria acabou de passar um café e sou obrigado a ir até lá tomar uma golinho. Passar bem.

Sexta-feira, Fevereiro 4

(Micro) Contos

Festa
Alivio geral. Ela foi para não voltar.

Hombridade
Foi macho. Assumiu o namorado.

Noite
Acordou do pesadelo. Voltou do funeral da sogra.

Alegria
Acabou a força. Fim do carnaval.

(nota do editor: inspirado no livro "Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século", histórias inéditas de até 50 letras - sem contar título e pontuação - , o autor decidiu fazer a própria a versão da obra. Aqui há um começo. Paira a duvida se haverá mais.)

Quarta-feira, Fevereiro 2

Companhia

Marli entrou no banho animada. Em pouco tempo, Murilo chegaria. Só de pensar nisso seu coração disparava. Pensava nos bons momentos que passariam juntos. Enquanto a água lhe escorria pelo corpo, massageava sua pele com o sabonete cheiroso como se as mãos dele estivessem percorrendo cada uma de suas curvas.

Curvas não lhe faltavam, aliás. Apesar da idade, Marli chamava a atenção por onde passava. Na verdade, isso foi o resultado de um processo. Depois de 32 anos de um casamento massacrante, viu-se abandonada de uma hora para a outra. Entrou em depressão, comeu compulsivamente e, claro, engordou. Muito. Dava pena de seu estado.

Um dia ficou se olhando no espelho longamente. Por uma hora, talvez. Ao ver aquela figura decadente, a sua própria imagem!, teve diversas sensações. Primeiro teve asco. Em seguida ficou com raiva. O ápice foi sentir dó do que via. Tinha dó de si mesma. Percebeu, então, que havia chegado ao fundo do poço. Que estava afundada na lama e que de lá precisava sair com urgência.

A primeira decisão foi cuidar de si mesma. Exercícios, dieta balanceada, meditação. Tudo para entrar no eixo novamente. Depois, foi estudar inglês, arrumou um novo emprego e se tornou uma nova pessoa. Uma pessoa melhor, diziam todos.

Já passavam das dez da noite quando o interfone tocou. Ela abriu a porta esperando por Murilo. Ao sair do elevador, ele encontrou Marli vestida com um robe provocante. Foi em sua direção e deu-lhe um beijo ardente, daqueles que ela adorava e faziam suas pernas bambearem.

Antes de arrastar o rapaz para seu quarto, Marli disse com o carinho habitual:- Se eu estiver dormindo quando você for embora, não esquece de fechar a porta e de pegar o seu dinheiro, ta?