Quarta-feira, Dezembro 28

Testamento

Deve ser mal de família. Foi assim com meu avô, tem sido assim com meu pai. O fato é que, a cada dia que passa, fico pensando na morte. Mas não, não sou tão mórbido assim. Na verdade, fico pensando o que será feito de mim, ou pelo menos o que sobrou, depois que eu bater os tênis.

Mórbido, eu acho, é esse culto ao morto. O sacrifício do velório, com aquele cheiro sufocante das coroas de flores. Aquela procissão tenebrosa, com as pessoas constritas, em direção à cova. A dor de ver aquela caixa de madeira envernizada descendo buraco abaixo. Tristeza, desespero, compulsão.

Depois, as visitas ao túmulo. A cobertura de granito. O nome e as datas em bronze. Aquela foto constrangedora, querendo como que dar vida ao morto. E, aos poucos, as visitas escasseiam, e aquele pequeno memorial vai se deteriorando, comido pelas intempéries e castigado pelo tempo.

Não, não quero nada disso. Não quero ser cultuado ou velado. Não quero flores nem vela. Não quero olhares úmidos em direção daquele pedaço de solo onde só existem os bichos da terra. Eu não mais existirei. Terei ido para lugar nenhum. Desaparecerei como um dia surgi. Do nada para o nada. Quero só que respeitem e atendam meu último desejo. Queimem o que sobrou de mim. Joguem num canteiro, num rio, no ar, em qualquer lugar onde ninguém possa me encontrar. Para que eu possa, finalmente, viver em paz.