Terça-feira, Novembro 30

Conforto

Deitado em sua cama, Reinaldo via passar em sua mente boas lembranças. O apartamento, a geladeira de último tipo, a tv de tela grande que enchia a sala não tão grande assim.

“Bons tempos, bons tempos”, pensava. De fato, Reinaldo era do tipo de pessoa que valorizava essas coisas. Não que ele gostasse de ostentar. Pelo contrário. Não tinha nem condições para isso. Queira mesmo era ter o conforto que não conheceu na infância.

Seu maior problema, porém, foi poder comprar tudo isso. Trabalhava, mas o salário era pouco. O emprego, aliás, fora arrumado pelo irmão. Reinaldo, na verdade, nem era muito chegado a trabalho. Mas precisava viver. Conformado, levava aquela vidinha sem aspirações que fossem além de abastecer-se de confortos eletro-eletrônicos.

A mulher estranhou um dia tantas novidades. Sabia que a renda de ambos não era suficiente. Ele respondeu que um “cara é que vende barato no bairro. Ele encosta o caminhão e quem quer, leva na hora”. “Carga roubada, é claro”, disse ela entre nervosa e brava. Ele retruca “Eu não sei de nada. E como eu não sei, eu compro”. Ela ameaçou começar uma discussão. Desistiu. Sabia que a teimosia e a obtusidade do marido a venceriam. Sempre venceram.

Embalado pelas memórias daqueles tempos, Reinaldo voltou a fechar os olhos e começou a afundar no seu sono. Foi interrompido por uma batida metálica. Era hora de levantar. Restavam ainda 1 ano, 3 meses e 7 dias de pena para cumprir. Fora condenado por receptação de carga roubada. Suspendeu-se da cama e saiu para o banho de sol diário.

Sexta-feira, Novembro 26

Protesto

- Você sabe qualé o problema do mundo? Eu vou te dizer. O problema é que ninguém respeita mais nada! Nada! Fila, por exemplo. Sempre tem um desgraçado que fura a danada. Pra quê? Qualé a vantagem? Conseguir o que ele quer antes de todo mundo? Grande coisa. Espera. Esperou nove meses pra nascer! E a molecada de hoje em dia? Não querem saber de nada! Nada! É videogame, celular, tv. Livro que é bom, nem pensar. Ficam vagabundeando o dia todo por aí. Vão aprender, minha gente, vão! Mas também, com o que passa na tv. Fique assistindo o dia inteiro, fique. Nada presta! Nada! Só tem gente fazendo fofoca da vida alheia. Outros exploram a miséria da humanidade. Ah, e como têm assunto! Sem falar, claro, na pornografia. É um tal de mulher ficar passando na tela com pouca roupa. Biquíni fio dental já virou uniforme! Uma indecência, uma pouca vergonha. Falta a essa gente compostura. Falta a essa gente, decência. Falta a essa gente, seriedade. Falta pudor! Essa gente toda não tem nada disso! Nada!
- Cala a boca e dorme, marido, cala a boca e dorme.

Quarta-feira, Novembro 24

Recato

Apesar dos quase 30 anos, Clara tinha jeito de menina. O rosto sem as marcas do tempo, a pele bem branca, o cabelo castanho quase escuro, os olhos levemente esverdeados faziam dela uma figura muito interessante. Mas, ao mesmo tempo, era uma mulher muito sóbria. Fechada, até. Vestia-se comportadamente. Saias abaixo do joelho, camisa abotoada bem abaixo do pescoço que era envolvido por um pequeno crucifixo. Sim, era muito religiosa.

Mesmo jamais tendo recebido um sinal de que poderia se aproximar, sempre que podia, Carlos puxava conversa. Coisas bobas como o tempo. A eterna dúvida: choverá no final de semana? Delicadamente, Clara se afastava.

De fato, Clara era um enigma para quase todos. Tinha poucos amigos na firma. Conversar mesmo, só com Joana, do financeiro. O que sabiam é que era solteira e morava com a mãe, diretora da Liga das Senhoras Católicas. Também não participava muito das atividades sociais da empresa. Das festas de final de ano, ia embora cedo. Oito horas, no máximo. Happy hour, só foi em um. E bebeu apenas um suco de abacaxi “com hortelã, por favor”.

Carlos, porém, não desistia. Aquela pureza que Clara emanava o enlouquecia. Ficava imaginando como seria seu corpo por baixo das roupas discretas. Sua excitação aumentava quando pensava nela despida, usando apenas uma lingerie para lá de comportada e o crucifixo repousado entre os seios, que imaginava serem redondos e levemente caídos. Nessas horas, precisava ter cuidado ao levantar.

Surgiu, então, a oportunidade de uma aproximação definitiva. A festa de final de ano seria numa chácara. Iam no ônibus contratado pela companhia. Clara não tinha como escapar.

Lá pelas tantas, já amortecido pelo chopp que jorrava abundante, Carlos viu sua presa afastada dos outros. Conversava com Joana. Aproximou-se. Mas desta vez foi direto. Disse a ela sobre seus desejos. De como a queria. Sem abalar-se, Clara olhou-o com firmeza e disse “Já tenho compromisso”. “Mas com quem?”, ele retrucou surpreso. Joana foi ao encontro de Clara, beijou-lhe suavemente os lábios e puxou-a em direção à barraca de sucos.

Terça-feira, Novembro 23

Compromisso

Ele assumiu os negócios da família e foi morar no interior. Ela abandonara um longo relacionamento e queria curtir a nova vida. Amigos de infância, não se viam há muito tempo. Até o dia que um amigo em comum fez com que se reencontrassem numa festa qualquer. Ficaram. Muitas vezes. Na verdade, a certa altura, namoravam.

Anos e anos de compromisso. Famílias e amigos sempre perguntavam “E o casamento?”. Cada encontro com um dos grupos era um martírio. Aquela aporrinhação sem limites ou escrúpulos era enervante, concordavam.

Um dia, resolveram casar. Juntaram pais, irmãos, tios e avós para contar a novidade. Churrasco na brasa, cerveja na mesa, pediram silêncio para dar a notícia. Euforia, abraços que estalavam nas costas, beijos molhados. A comoção era geral. Só depois de um tempo notaram, no canto, a mãe dele. Chorava copiosamente. Não queria perder o filho querido.

Lá se vão 13 anos de namoro e ele ainda não se decidiu se casa com a mulher ou fica em casa com a mãe.

Segunda-feira, Novembro 22

Cultura e sabedoria, para onde vamos?

No farol, esperando o verde, uma estudante se aproxima toda pintada. Pedia dinheiro para ajudar na festa de formatura. A motorista, então, diz:

- Você ainda não formou em coisa alguma.
- Claro que sim! A gente se formamo (sic) no terceiro colegial.
- Querida, volta pro colégio. Você não está em condições de se formar em nada.

O sinal abre e o trânsito anda.

Sexta-feira, Novembro 19

Rotina

Era quase uma compulsão. Ele tinha que transar todos os dias. Costumava repetir, constrangedoramente, que sexo, mesmo quando ruim, era bom. Muito provavelmente foi esse o motivo que o levou tão cedo ao casório.

Casado, não havia problemas. Se não conseguia o que desejava de noite, na manhã não falhava. Dava aquela encostada na mulher, que já sabia o que esperar. E, claro, nem sempre ela queria. Mas o medo de perdê-lo, de ficar sozinha, na verdade, fazia com que aceitasse aquela situação.

Certa manhã acordou e percebeu o marido tomando banho. Estranhou. Ele não a tinha procurado na noite anterior e passara em branco a manhã. Perplexa, arregalou os olhos. Era a primeira vez que isso acontecia em 17 anos de casado. Esse pensamento, as lembranças dos 17 anos sem trégua, os desgostos ficaram presentes em sua mente durante todo o dia.

Na manhã seguinte, ainda sem transarem, ela acorda com o barulho do marido no chuveiro. Levanta-se quase num pulo e, com andar firme, irrompe banheiro adentro. O marido, assustado, encara-a com os olhos muito abertos. Passados 10 segundos olhando-se fixamente, ela grita “Você tá me traindo com outra, seu cachorro!”

Quarta-feira, Novembro 17

O caminho

Desde a mudança, algo novo surgiu. Neste novo blog, de nova proposta, uma nova janela se abriu. Descobri uma nova vertente na minha escrita. E, graças a ela, alguns me descobriram também. Dentre eles, constam alguns fiéis e abnegados amigos. Entusiasmados, vivem dizendo, eletrônica e pessoalmente, para eu escrever um livro. Só não me dizem sobre o que.

Se disser que nunca pensei em publicar um livro, seria uma grande mentira. Dizer que faria isso apenas pelo prazer de escrever, seria outra falácia. O que eu queria mesmo era, também, ganhar dinheiro com esse negócio de colocar idéias no papel. Ou, no caso do blog, na tela do computador.

No entanto, vejo a possibilidade de alcançar esse objetivo algo distante ainda. Não faço nem idéia de como dar início a esse projeto. Para mim, escrever o primeiro livro é como fazer o Caminho de Santiago de Compostela. Anda-se muito, durante muito tempo, sofrendo bastante para, finalmente, encontrar as respostas que se procura. Meio dramático, eu sei. Mas é assim que vejo a coisa.

Por enquanto fico aqui mesmo, escrevendo um texto aqui, outro acolá. Além, é claro, de agradecer, nos comments, as palavras elogiosas e parciais dos meus bons amigos.

Terça-feira, Novembro 16

Não sou de poesia, mas foi o que restou

Chove, chuva, chove
Chuva, chove, chomp
Chomp, chuva, shopping
Shopping, chuva, chomp

Ou

Como almoçar mal num dia chuvoso.


Sexta-feira, Novembro 12

Vantagem

- Bazófia!
- Não, não. É verdade, juro.
- Ba-zó-fia
- Meu, juro pra você.
- (silêncio)
- Tô te falando! Nem acreditei quando vi. Eu tava encostado no balcão, tomando uma, quando ela chegou e puxou papo. E 'cê me conhece. Joguei aquele xaveco e levei pra casa. Mulherão.
- Oi?
- Oi o que?
- O que você tava falando.
- Da mina. De ontem!
- Ãhn?!?
- Meu, 'cê ta louco?
- Eu não! Você que tá doido...
- Tô aqui te falando da gata que eu peguei e você fica dizendo que é bazófia!
- Eu?!?
- E não?!?
- Claro que não! Nem tô te ouvindo!
- E porquê você fica falando isso?
- Por nada. Só achei a palavra engraçada.
- ?!?!?
- Grandeeee, trás mais dois, faz favor!

Quinta-feira, Novembro 11

Justificativa

O tempo abafado da capital fazia todos penarem. Era um vento morno que entrava pela janela e aquecia o ambiente. Henrique, entre um despacho e outro na repartição, amaldiçoava a mesma burocracia que lhe dava emprego. Motivo? Ninguém liberava a tal verba do ar condicionado.

Para atrapalhar, Marilda ajudava a esquentar o ambiente. Com a temperatura lá em cima, ela se via obrigada a usar suas roupas mais frescas. E com menos panos. A cada passagem pela mesa, Henrique derretia. Não só pelo andar suingado e pelas formas cheias de pecado. Ele praticamente perdia a razão com o rastro suavemente perfumado que ficava.

Henrique não disfarçava. Já havia sido, inclusive, alertado pela chefia da repartição. E Marilda, apesar das caras de desprezo, no fundo parecia gostar quando os olhares invadiam seu decote despudoradamente.

Um dia, ele perdeu a cabeça. Voltando para casa com o paletó pendurado no braço, sua única preocupação era explicar para a mulher o que sua mão fazia sob a saia de Marilda.

Terça-feira, Novembro 9

Festejos

Sentado em sua poltrona e olhando através da pequena janela do apartamento, Rolf lembra-se muito bem daquele dia. Era uma tarde fria de outono e, junto com os amigos, bebia umas cervejas jogando conversa fora.

Uma agitação tomava conta da vizinhança. Já amortecidos pelos muitos litros que beberam, o pequeno grupo não entendia muito bem o que todas aquelas pessoas faziam saindo de casa. A noite começava a cair e, com ela, a temperatura. Mais cerveja para dentro. Curiosos, perguntaram a um passante o que acontecia. Um evento qualquer no centro da cidade. Não entenderam direito. “Deve ter garotas” disse um deles. Foram.

No caminho, recarregaram o estoque de cerveja. A festa não pode parar, afinal. Chegaram. Grande agito. Pessoas cantando, pulando, gritando. Uns começam a subir no muro e agitar a multidão. Um aparece com uma picareta. Outros têm marretas. Perplexos e embriagados, os quatro amigos assistem a queda do Muro.

Uma lágrima ameaça escorrer do rosto de Rolf. Rapidamente ele a remove. Levanta-se da poltrona e vai até a cozinha pegar outra cerveja para celebrar.

Segunda-feira, Novembro 8

Preenchimento

Sentados docilmente, aquelas 8 pessoas não faziam barulho. Som mesmo apenas de três funcionários, que enchiam o salão de um alarido perturbador. Quietos, os comensais limitavam-se a mastigar, resignados com aquele momento desprovido de sentido ou prazer.

Um deles, olhando para a bandeja à sua frente, pensava, entre uma batata frita e mais um naco do sanduíche gorduroso, “Não dá mais nem pra entupir as artérias em paz.”

Sexta-feira, Novembro 5

O alcaíde e os secretários

Naquelas alturas da história, o país já começava a respirar uns ares de abertura. O povo é quem escolhia seus governantes e deles cobrava os resultados. Isso acontecia por todo os lugares. Menos numa cidade.

Timópolis era uma cidadela que ficava no topo de uma colina, bem coladinha no rio. Dali, o alcaide tinha uma bela vista de toda a região. E da sua cadeira, colocada bem defronte à janela, comandava tudo a seu modo. Sem pressa, sem correria. O povo quer saúde? Que espere. Quer transporte? Que espere.

Ele, afinal, tinha muito o que fazer. Gostava de sentar-se ao lado da janela reunido com seu secretariado mais chegado. Ficavam ali falando sobre as cousas da vida enquanto o chefe fumava seu cigarro de palha.

Cada um dos seus três secretários preferidos, e que compartilhavam desses momentos privados, se dedicava a uma arte. A sua preferida, sempre poupada das mazelas administrativas, gostava de desenhar. Móveis, objetos para casa e que tais.

Outra, bonita e vistosa, era dedica às letras. Queria muito publicar um livro. Arrumou até um marido disposto a patrociná-la. Mas nunca ninguém jamais vira uma página completa sequer.

O terceiro, um varão galanteador, era ligado à pintura. Umas modernidades que as pessoas ou não gostavam ou não entendiam. Mas o prefeito aprovava e isso era o suficiente. Mas o que ele gostava, mesmo, era jogar seu charme sobre a bonitona. E ela, muito espevitada, dava corda que não acabava. Diziam até que eles tinham algo.

Vez por outra, os quatro saiam em missão oficial por aí. Mas ninguém sabia ao certo o que iam fazer. E assim passavam suas tardes dando expediente na prefeitura. Se por acaso alguém ousasse incomodar com as mundanidades relativas aos seus cargos, o prefeito de pronto saltava de sua cadeira e bradava contra a ousadia de interromper seus despachos com a pequena equipe.

No país ninguém entendia muito bem a situação da tal cidade. Como poderia ela ter tratamento tão diferenciado, sem ao menos ser incomodada por alguma autoridade superior. Alguém um dia disse, à boca miúda, que o prefeito era sobrinho do governador. Mas isso ninguém jamais ousaria questionar.

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Para muitos blog, isso não é nada. Pra mim é coisa pra caramba. Obrigado a todos vocês que sempre ajudam esse número subir cada vez mais.

Quinta-feira, Novembro 4

Trinta Segundos (Capítulo final)

Renato definitivamente perdera o controle da sua vida. Desde Andréia, tudo se tornara um caos. Os sumiços sem explicações, os aparecimentos do nada, o sexo selvagem. "Sujo, até", pensava. O que mais lhe doía, porém, era a falta de romantismo.

Ele era assim. Carinhoso, mandava flores e comprava presentes. Nem precisava de motivos para tal. Bastava sentir-se feliz para fazer um agrado à amada. Mesmo assim, seus relacionamentos não duravam. E nunca entendia porque. Pelas costas, amigos e "ex" diziam que ele era um tanto grudento. Daqueles que se excediam nas atenções. Três décadas antes seria um partidão, disseram um dia.

O desgosto por tudo foi demais para Renato. Passou a repensar a vida. Afastou-se de Andréia desde aquela noite do "sexo à três". Ela até ligou uma ou duas vezes mas ninguém atendeu. Na segunda, até recado deixou. Nenhum retorno.

Um dia, numa roda de amigos, Andréia ouviu dizer que viram Renato. Parece que ele foi visto saindo 8 da manhã de uma boate lá do centro. Estava abraçado com um travesti de 1,80 que tinha uma peruca loira toda torta. Mas disso ninguém tinha certeza.

Segunda-feira, Novembro 1

Trinta segundos (3o. capítulo)

Andréia de fato esteve enfurecida. Depois de 5 dias sem aparecer, transou com Renato como talvez nunca tivesse feito antes. Ao final, ainda deitado sobre o tapete da sala, ele tentava entender o que acabara de acontecer. Afinal, o que foi aquilo? Sexo?

Levantou com as pernas trêmulas ainda. Respirou fundo e disse “Precisamos conversar”. Recebeu um olhar de interrogação e reprovação. Para que falar num momento desses, pensou ela. Mas Renato insistiu. Mostrou que estava descontente, muito descontente com o rumo que o relacionamento tomou. Na verdade, nunca foi diferente, mas achava que um dia poderia mudar tudo. Não conseguia e por isso estava cansado.

Olhando muito seriamente, Andréia só ouvia aquele discurso. Tinha um certo ar de desprezo por tudo aquilo. Um ar propositado, diga-se. Ela sabia como irritá-lo. No meio discurso ouviu “Encontrei uma outra pessoa. Tenho certeza de que com ela eu serei feliz”.

Interrompendo aquele falatório, Andréia levantou-se rapidamente, colocou a mão no peito dele e disse com muita serenidade “Sexo à três? Tá bom, eu topo. Só avisa quando.” Virou-se e partiu. Desconcertado, Renato ficou parado, ainda nu, olhando para a porta por muito tempo.