Quarta-feira, Dezembro 28

Testamento

Deve ser mal de família. Foi assim com meu avô, tem sido assim com meu pai. O fato é que, a cada dia que passa, fico pensando na morte. Mas não, não sou tão mórbido assim. Na verdade, fico pensando o que será feito de mim, ou pelo menos o que sobrou, depois que eu bater os tênis.

Mórbido, eu acho, é esse culto ao morto. O sacrifício do velório, com aquele cheiro sufocante das coroas de flores. Aquela procissão tenebrosa, com as pessoas constritas, em direção à cova. A dor de ver aquela caixa de madeira envernizada descendo buraco abaixo. Tristeza, desespero, compulsão.

Depois, as visitas ao túmulo. A cobertura de granito. O nome e as datas em bronze. Aquela foto constrangedora, querendo como que dar vida ao morto. E, aos poucos, as visitas escasseiam, e aquele pequeno memorial vai se deteriorando, comido pelas intempéries e castigado pelo tempo.

Não, não quero nada disso. Não quero ser cultuado ou velado. Não quero flores nem vela. Não quero olhares úmidos em direção daquele pedaço de solo onde só existem os bichos da terra. Eu não mais existirei. Terei ido para lugar nenhum. Desaparecerei como um dia surgi. Do nada para o nada. Quero só que respeitem e atendam meu último desejo. Queimem o que sobrou de mim. Joguem num canteiro, num rio, no ar, em qualquer lugar onde ninguém possa me encontrar. Para que eu possa, finalmente, viver em paz.

Sexta-feira, Julho 8

Pensamento solto

O Carnaval é a mais triste forma de expressão cultural que um povo pode ter.

Quinta-feira, Junho 23

Despertar

Abraçou-me docemente, despertando-me. Lá longe, ouvi o despertador berrando insistentemente para que eu recobrasse a consciência perdida pelo sono profundo. Mas aqueles braços me envolviam com tanto carinho que não me sentia em condições de levantar.

Com a mente anuviada, típica de quem mal acaba de acordar, comecei a pensar nos afazeres do dia. Nas preocupações que teria na empresa. Na reunião de assunto acre que aconteceria logo após o almoço. A apresentação enfadonha para o final do expediente.

Juntei minhas forças para levantar, sair debaixo das cobertas e me expor ao vento frio daquela manhã de inverno. Ao perceber o início do meu movimento, minha cama me abraçou com força e carinho, como se não quisesse que eu partisse. E lá fiquei por mais 3 reconfortantes horas.

Quarta-feira, Junho 1

Frase da semana

Quando eu morrer eu quero ir para o inferno. Tenho medo de sentir saudades disso aqui.

Segunda-feira, Maio 23

Frase da semana

A convivência acaba com qualquer relacionamento.

Quinta-feira, Maio 19

Verdades

“Hahahahahahahahaha… Essa foi boa. Agora vai dizer sobre como os dois devem se ajudar no dia-a-dia. Ah, o de sempre. O discurso não muda, né? Tá, fala logo dos filhos. Vai tentar você criar um moleque, vai. Aí você vai ver o que é bom pra tosse. Na primeira festinha que ele te ligar às 3 da matina pra ir buscá-lo você abre o bico, malandro. Hummmm… Como essa mina cresceu! Tá uma beleza! Vistosa pra caramba. Vou chegar fácil nela. É só tomar uns goles e boa. É nóis. Tomara que a mala da mãe dela não fique no meu pé. Dessa vez eu mando ela tomar naquele lugar. Não, não, não… esse papo de compartilhar, não. Coisa mais babaca. Foda-se, eu gosto de ver futebol mesmo, e daí? … Acho que vou cochilar em pé. Será que alguém vai se ligar? … Puts, tá acabando. Ainda bem.”

— … que fale agora ou cale-se…

— ‘Sêo’ padre, o senhor não entende porra nenhuma de casamento!!!

Sexta-feira, Maio 13

Vida

Outro dia, acho que motivado pela desesperança que que me abate, fiquei pensando nas razões da vida. 5. O que será que significa tudo isso? Stress do trânsito, do chefe carrasco, do salário de fome. E tem ainda a namorada, que não entende o que eu fico fazendo até tarde no escritório. Trabalho, sempre trabalho. Até cansar. 14. Dos amigos, me afastei totalmente. Na verdade eles se cansaram de me esperar. E de eu nunca aparecer. Minha mãe disse que vai me deserdar de uma herança que eu não tenho direito nem ela tem para dar. Meu pai… melhor nem falar nele pra não começar a chorar. 39. Eu vejo tudo isso acontecendo e não consigo mudar. Não é que eu não tenha vontade. Simplesmente não tenho mais forças para tal. E creio que, a essa altura, já esteja começando a me entregar, desistir de vez, soltar o corpo e deixar a correnteza da vida me levar. 47. Vez ou outra tento me segurar num galho qualquer pendurado próximo à margem. Inverialvelmente, sucumbo às forças ao meu redor. Tem muitos que me acham acomodado. Ora. E lá sabem eles o que eu passo? 49 Pois então é o que eu digo. Se não sabe, não diga. É muita fácil ficar aí de fora, nessa vida boa - merecida, mas boa – me criticando. Tenho certeza de que apenas um dia, umzinho apenas, que certos sujeitos vivam como eu eles pediriam penico antes de pedir o cafezinho de logo após o almoço. 53 Não sabe como é. Não sabem mesmo… Só um minuto…. Peraí… 1, 2, 3, 4, 5, 6… Seis!!! Caralho!!! Seis pontos!!!!! Fiz seis pontos!!!! Putaqueopariu!!!! Eu Tô riiiiiicooooooooooo!!!!!

Quarta-feira, Maio 11

Criação

- Mas…
- Shhh…
- …
- …
- É que eu…
- shhhhhhhhhshhhh…
- …
- …
- …
- …
- É rapidinho… Eu…
- Meu, cala a boca, porra! Tô tentando escrever!

Quinta-feira, Maio 5

O começo de tudo

- Charles, meu amado filho. Que bom revê-lo depois de tanto tempo! Como foi de viagem?
- Bem, papai, bem.
- E como estavam as coisas por lá? Suponho que aprendeste milhares de coisas novas.
- Ah, claro, meu pai. Foi, sem dúvida, uma experiência fascinante. Que país, que país. As fábricas, as ruas, os carros… Um portento.
- Fantástico, fantástico. Uma coisa me intriga, no entanto. O que são estes dois sacos de couro que estão sobre sua cama, Charles?
- Sacos? Que sacos?
- Estes, olhe.
- Não são sacos, meu pai. São duas bolas de futebol.
- Bolas do que?
- Futebol. Toda a juventude inglesa pratica. E, se Deus quiser, farei com que todos neste país joguem futebol.
- Ah, Charles, me jovem. Por acaso você acha que alguém abandonará a fascinação de uma boa partida de cricket por esta moda passageira?

Segunda-feira, Maio 2

(Micro) Contos - 2

Corria para não chegar a lugar algum.

Detestava teatro, mas adorava viver uma vida que não era sua.

Surdo, ficou mudo de tanto gritar.

Quinta-feira, Abril 28

Missiva

Olá querido,

Eu sei, faz tempo que não te escrevo. As coisas andam complicadas por aqui. E não é por que tenho muito o que fazer, não. Pelo contrário. O ócio só me faz querer largar meu corpo na rede e por lá ficar.

Já sei. A essa altura você deve estar me amaldiçoando. Lembro bem da ladainha. Sei também dos motivos que cá me trouxeram. Produzir, produzir e produzir. Mas como é que eu faço isso? De onde eu tiro inspiração? Do “sêo” Antônio, da venda, que passa o dia olhando para os sacos de quirera, feijão e arroz?

E qualé a graça que pode ter a dona Mirtes, do armarinho, que, além das linhas e fitas, gosta de se preocupar com a vida dos outros e vive dando agulhadas por aí? Ora, meu caro, evidente que não. Tu sabes que a vida é bem mais que isso.

Queria que tivesses aqui para revivermos aqueles bons momentos, lembra-te? Nossas conversas sobre essa vã filosofia que guia esse nosso mundo. As caminhadas sob o veludo negro da noite a falarmos sobre as artes e a vida maravilhosa em Paris. Ah, sinto agora o cheiro de fumo e brandy que dominavam a sala dos fundos da casa.

Bons tempos, bons tempos. Mas cansei. Me despeço agora pois gastei minhas energias te escrevendo. E já passou da hora de repousar. Faz meia hora que terminei meu almoço e meu corpo suplica pela sesta.

Um beijo pra você e para o Amadeu,

Luise

Terça-feira, Abril 5

Decisões

Giovanni estava assustado com toda aquela movimentação. De repente, a rotina do trabalho foi quebrada. Não servia mais apenas a seus superiores diretos. Agora precisava servir também os que vinham de fora. E como eram exigentes. Sempre pediam comidas e petiscos difíceis de se conseguir. E copos sempre cheios era uma obrigação. Naqueles dias trabalhava 14, 16 horas a cada jornada.

Na hora de dormir, tinha problemas. Aquele monte de ordens sendo dadas sem trégua confundiam sua jovem cabeça. Sem falar no emaranhado de diferentes línguas com que tinha que conviver. O pior, no entanto, era passar o tempo todo envolto pela grossa fumaça que adensava o ar de maneira sufocante, emitida pelos robustos cubanos que pousavam na mão de muitos dos participantes.

A intenção de Giovanni era, depois daqueles dias absolutamente desgastantes, largar tudo e se mandar. Detestava a forma como era tratado por todos. Um desdém que pouca vezes vira. Mesmos seus chefes, sempre amáveis, pareciam carrancudos, algo azedos.

Não ia embora, na verdade, porque tinha uma missão a cumprir: continuar o trabalho do pai, já falecido, que por muitos anos trabalhou no mesmo posto que ele ocupava agora. E, como o pai, era extremamente obediente às ordens superiores.

Em dado momento, porém, irritado pela fumaça de um charuto que pendia sobre um cinzeiro e jogava fumaça direto em suas narinas, disse a um colega que acabara de servir um generosa dose de conhaque a um senhor: “Será que vão demorar muito ainda para decidir qual deles será o próximo papa?”

Segunda-feira, Abril 4

Viagens

Um dia comprei um tênis para andar e conhecer o mundo.

Outro dia comprei um carro para conhecer o mundo mais rápido.

Outro dia comprei um barco para conhecer os outros lados do mundo.

Outro dia comprei um avião para deixar qualquer lugar do mundo perto.

Um dia meu dinheiro acabou. Só me restou esta poltrona para eu sentar e ver o mundo passar.

Sexta-feira, Abril 1

Sala de espera

- Próximo!
- Olá, Senhor…
- Oi… De novo, né?
- Pois é. Daquela vez não foi. Dessa não vai ter jeito.
- Eu sei. O Pedro me falou.
- Cadê ele?
- Tá cheio de trabalho. Você sabe, o Iraque tá uma loucura.
- Entendi. Bom, posso entrar?
- Calma, Karol. Parece que o pessoal do Vaticano ainda não liberou a sua saída. Senta aí e espera um pouco.
- O Senhor é quem manda.

Segunda-feira, Março 28

Quinze minutos

Suava frio. De escorrer do alto da testa e chegar a molhar o colarinho da minha camisa. Devo admitir, apesar de ter muito lutado para chegar àquele momento, estava com medo daquela situação. Um frio na barriga e um nó na garganta praticamente me impediam de falar. Aquela gente toda ali, olhos atentos e audição aguçada, esperando pelas minhas palavras.

Sim, eu havia me preparado para passar por tudo isso. Ensaiei meu discurso inúmeras vezes. Sabia de cor cada palavra, a entonação, as pausas. Na teoria, era perfeito. Só não contava com a paúra que me acometia com tanta força. Não havia, porém, como voltar atrás. Havia marcado aquela reunião. Pelo vidro, via as pessoas todas se acomodando na sala à minha espera. Sentia meu coração batendo forte e rápido como se quisesse saltar pelo meu peito rasgando minha camisa nova, comprada para aquele momento.

Não tinha mais como adiar. Toquei a campainha e esperei resposta. Ao ver uma pequena fresta se abrindo, empurrei a porta com força e entrei. Entrei e despejei o discurso ensaiado. Falei, pelo que ouvi dizer, 15 minutos sem parar. Atônita, minha platéia ficou muda e espantada com minha atitude. E durante todo o tempo em que lá estive, não fui interrompido por um pio sequer.

Não tenho muito claro o que aconteceu. Até hoje, minha noiva, perdão, ex-noiva não me perdoa. Só não sei se por eu ter resolvido sair do armário daquela forma ou por causa da portada que dei em sua avó.